6 dicas para quem quer começar a desenvolver materiais didáticos

Esta postagem é a terceira e última de uma série de respostas que ficaram devidas (ou devidas devidamente) durante uma live de que participei recentemente. Na primeira postagem-resposta, eu escrevi sobre o peso dado a cada habilidade linguística na produção de livros didáticos. Na segunda, sobre como as imagens são escolhidas e definidas. Bem, tudo isso na minha experiência de 25 anos trabalhando no desenvolvimento de livros didáticos e outros materiais pedagógicos para o ensino de línguas estrangeiras. Tudo começou com Buddies, uma coleção de livros paradidáticos que coescrevi com Branca Fabrício em meados dos anos 90 do século passado.

E a minha experiência é também o que orienta o assunto desta postagem de hoje: dicas de procedimentos para quem deseja começar a trabalhar na área de criação de material didático. A lista que apresento a seguir não segue ordem de prioridade. Aprendi, ao longo das últimas duas décadas e meia, que tudo isso é importante:

1 Dedicar muito tempo para aprender sobre materiais didáticos

Esta aprendizagem precisa ir além do foco “materiais”. Ela precisa, e precisa fundamentalmente na minha opinião, olhar para o pedagógico. É necessário um repensar constante sobre o que entendemos por ensinar e aprender, e como isso pode ser feito. É preciso entender sobre teorias de ensino e aprendizagem. E sobre métodos e abordagens de ensino. A experiência em sala de aula, como professora, me ajuda muito na hora de escrever. Eu visualizo a cena: o espaço, os recursos, a interação entre os três participantes nesse processo: alunos-professor-material didático. E penso: de que forma o material que estou desenvolvendo contempla a fundamentação teórica que pretendo seguir? O que falta? Como o material pode ser melhorado? Nesses momentos volto à minha estante de livros com frequência, para reler sobre um conceito teórico, sobre um assunto linguístico mais específico ou sobre resultados de pesquisas.

2 Ter clareza de que os materiais que você desenvolve não são só para você usar

De uma forma ou de outra, todo professor cria materiais pedagógicos. Começando por planos de aula e passando por atividades, testes, jogos e muitos outros. Criar módulos ou unidades de livros ou livros inteiros são de certa forma processos semelhantes, apenas em uma maior escala. Mas no momento em que disseminamos o material que criamos (seja na publicação impressa de um livro, ou na postagem de arquivo de um plano de aula em uma rede social, ou em qualquer outro formato), outro professor irá se apropriar desse material e fazer dele a forma de mediar o ensino e a aprendizagem nas suas aulas. O cenário de apropriação pode ser semelhante ao seu, se vocês trabalham na mesma instituição e têm alunos com perfil sociodemográfico parecido com o dos seus alunos. Mas mais provavelmente esse professor atuará em um espaço bem diferente, com características contextuais (localização geográfica, perfil dos alunos, objetivos educacionais, modalidade de ensino etc.) também distintas. Parece uma missão impossível mas, sim, você tem que pensar em professores diferentes de você e alunos diferentes dos seus ao escrever.

3 Estabelecer um network amplo

A justificativa para esta dica é óbvia: aprendemos com colegas; novas oportunidades surgem quando conhecemos outras pessoas; a satisfação pessoal é grande na troca interpessoal. Quando comecei a desenvolver material didáticos, minha rede de colegas estava restrita às escolas em que trabalhava, às pessoas que conhecia nos congressos a que ia e nos cursos (sempre presenciais, àquela época) que fazia. Isso mudou radicalmente. Hoje você pode estabelecer uma rede de conexões ao redor do planeta, incluindo pessoas com quem nunca interagiu face a face. Eu continuo gostando muito de participar em conferências nacionais e internacionais – sempre aprendo muito com elas. Este ano foi diferente – houve uma explosão de eventos virtuais, e se não houve a vantagem de estar em salas com outras pessoas de todo o mundo para falar, ouvir e aprender, houve a oportunidade de transitar em mais eventos (lives, webinários, cursos e congressos).  Infelizmente esses eventos nem sempre permitem conhecer melhor novos colegas, ou laços profissionais mais sólidos, mas acredito que de uma forma é possível ampliar o seu network mesmo dentro da limitação de eventos online. 

4 Participar ativamente em eventos para formação profissional continuada

Esta ideia está atrelada às questões do tempo para aprendizagem e do estabelecimento de um network amplo, sobre as quais comentei acima. A participação em eventos, de fato, une essas duas ideias. Se você é freelance, como são muitas pessoas que desenvolvem materiais didáticos, a participação nesses eventos é a sua forma de ficar atualizado com as mudanças constantes na área, não apenas sobre tecnologia mas sobretudo sobre novas formas de se entender o ensinar e o aprender no século XXI. Esta percepção é muito importante na minha opinião: para deixar mais claro o que quero dizer, proponho que você visualize o processo de ensino e aprendizagem como uma construção em progresso, amparada por um andaime: a tecnologia é um dos tijolos componentes da construção. As fundações da construção são o que torna a prática profissional sólida: e para ter essa base bem construída precisamos sempre, procurar saber mais sobre teorias e conceitos-chave em educação em geral e educação na área para qual você desenvolve materiais em particular.

5 Procurar inspiração “fora da caixa”

A má notícia para quem desenvolve (ou quer desenvolver) materiais didáticos é que é impossível desligar dessa função. Mesmo quando se está caminhando, conversando com amigos e familiares, visitando museus, vendo um filme, praticando um hobby, estamos sempre ligados em como algo que percebemos ao nosso redor pode ser aplicado no desenvolvimento de materiais. Bem, pelo menos para mim a solução é ver isso como uma boa notícia – a adrenalina que essa atividade cerebral gera me faz bem. E há outra grande vantagem: a inspiração que vem de lugares inusitados pode ser mais criativa. Para mim, visitas a museus podem ser muito inspiradoras: informações sobre ciência, artes, história, ou qualquer outra área podem tornar seu material mais engajante.  Há alguns anos, na Australia, visitei o museu Woolshed em Jondaryan, perto de Toowoomba. Ele é um desses museus ao ar livre, em que se reposicionam construções do passado: lá se pode visitar, entre outros, um galpão para tosquia de ovelhas, uma ferraria, residências antigas, uma prisão, estábulos – e uma escola, a Woodview School, construída em 1890. As fotos abaixo, na sequência, mostram a direção do meu olhar ao entrar na escola. Primeiro, ele foi direcionado a toda a sala de aula, depois à mesa do professor, para mais detalhes. Finalmente, minha atenção foi capturada por um texto listando as regras a serem seguidas pelas professoras da escola em 1915. O texto é uma mina de ideias: pode inspirar atividades para uso de verbos modais em inglês (ou para articulação de regras em qualquer língua); pode servir como ponto de partida para aulas que tratem de obrigações de professores (ou quaisquer outros profissionais) do passado, do presente e mesmo do futuro; pode servir como referência para conversas ou debates sobre o papel da mulher na sociedade; sobre vestimentas; sobre muitos outros assuntos presentes em materiais pedagógicos.

Woodview School em Woolshed, Austrália, 2014 (Foto de Denise Santos)

E assim as ideias pipocam, muitas vezes a partir de situações cotidianas. A dica subsidiária aqui é: registre as suas ideias por escrito no momento em que elas aparecem, senão você pode se esquecer delas. Eu costumo anotar as minhas ideias no meu celular ou em um caderninho que tenho sempre às mãos.

6 Olhar a sua trajetória profissional em perspectiva

Eu acredito que o repensar profissional torna as ideias mais afinadas e refinadas. Gosto de remexer em coisas que escrevi no passado, tentando responder: por que escrevi isso? Com que finalidade pedagógica? O que eu acho dessa ideia hoje? Se meu pensamento mudou, por que mudou? O que se ganhou com as mudanças? O que se perdeu? Eu tento construir pensamentos assim sobre o que escrevo hoje também, ao mesmo tempo em que procuro projetar um olhar com perspectiva, exterior a mim. Eu sempre me pergunto: por que estou escrevendo isso hoje, desta forma? Como será que no futuro as minhas crenças e prioridades atuais serão percebidas? Será que há aqui algum equívoco que preciso considerar?

E ficam aqui as dicas. Como espero ter deixado claro nesta postagem, a prática de desenvolvimento de materiais didáticos é muito gratificante tanto na esfera profissional quanto na pessoal. Espero também que meus pensamentos gerem novos pensamentos para você – que tal registrá-los na caixa de comentários abaixo?

4 thoughts on “6 dicas para quem quer começar a desenvolver materiais didáticos”

  1. Olá, Professora Denise!

    Só hoje tive acesso ao vídeo do webinar que apresentou na semana passada e, como resultado, vim ver o seu site.

    Fui professor de português e inglês no Brasil por muitos anos, tanto em escolas públicas como em particulares, escolas de línguas, universidades… Este seu texto sobre a criação de materiais didáticos instigou-me muito, pois é exatamente o que estou a fazer neste momento. Acabei de revisar — e ampliar — o material que escrevi para ensinar a língua portuguesa a imigrantes em Portugal. Tem sido uma experiência fantástica. Bem que eu gostaria de ter livros maravilhosos como alguns que existem para a língua inglesa — que ainda uso, já que tenho alguns alunos para aulas de inglês, parte deles pelo Skype (sim, são muito mais editoras e autores nesse trabalho, portanto, a variedade e a qualidade tendem a ser maiores). E não penso em usar material de PLE produzido no Brasil, uma vez que os meus alunos MORAM em Portugal. Assim, na ausência de material didático que me agrada para os níveis A1 e A2, criei as lições que uso e, modéstia à parte, estou muito satisfeito com o resultado. Basicamente, segui a técnica PPP, uma vez que acho até estranho pedir aos alunos que produzam algo antes de o professor apresentar o novo assunto.
    Bem, obrigado pelas suas explicações e ideias, tanto no vídeo como neste site. Certamente vou visitá-lo mais vezes.
    Respeitosamente,
    João Ghizoni

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    • Olá João. Obrigada pelo seu comentário e achei fantástica a sua experiência de produzir materiais para imigrantes. O campo de atuação “produção de materiais” é grande e ativo. Há grupos dedicados a isso em associações profissionais; há muitas apresentações sobre o assunto em conferências; há muitos cursos etc. É uma aprendizagem constante. Quando posso eu deixo uns pensamentos aqui no site. Vamos continuar a conversa!

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  2. Olá Denise!

    Agradeço muito pela sua iniciativa de compartilhar algo tão precioso como as suas dicas acima! Sou professora de inglês há muitos anos, e depois da pandemia comecei a ensinar online. Os desafios têm sido muitos. Aprender a usar uma plataforma ou software é muito fácil, mas estar presa por não poder se deslocar da frente do laptop, por mais que pareça ser muito mais fácil, é muito mais difícil em se tratando de ensino de línguas… E a criação de materiais didáticos fica cada vez mais complexa por conta da falta de importância que a educação vem recebendo ao longo dos últimos anos. Muito infelizmente…

    Enquanto a educação for tratada como “fast food”, e “escolas bilíngues” pipocarem sem realmente terem um plano eficiente de ensino bilíngue, vai ser bem dificil preparar a “real meal”.

    Agradeço imensamente, novamente, pela preciosidade que você deixou para nós professoras de inglês.

    Thank you so much! ❤️

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