Como fazer a divisão das habilidades ao desenvolver material pedagógico? 25% por habilidade?

Um preâmbulo: Esta postagem é a primeira em uma sequência que tem o objetivo de responder a algumas perguntas feitas por participantes em uma live em que participei no Instagram no dia 2 de novembro passado (para ver a live, clique aqui). A pergunta-título da postagem foi feita pela professora Celia Limani Boisson Moraes, do Centro de Línguas Ann Arbor. Ao longo da postagem proponho algumas pausas para reflexão. Caso queira compartilhar seus pensamentos, ideias e experiências – ou fazer novas perguntas – deixe um comentário ao final da postagem.

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A resposta curta à pergunta-título é “depende”. Aliás, esta é a resposta (curta) para muitas das perguntas sobre desenvolvimento de material pedagógico.

Fundamentalmente, como segmentar qualquer conteúdo depende dos objetivos gerais do material que está sendo desenvolvido, incluindo, de forma também fundamental, as necessidades do público-alvo. Se o material pretende preparar alunos para um exame estandardizado, por exemplo o TOEFL (Test of English as a Foreign Language) ou IELTS (International English Language Testing System), o trabalho de compreensão (oral e escrita) e produção (oral e escrita) deve corresponder à demanda do exame ao mesmo tempo em que contempla potenciais dificuldades dos alunos. Estudantes brasileiros que falam português e se preparam para o DELE (Diplomas de Español como Lengua Extranjera), por exemplo, possivelmente precisarão de menos tempo de prática em compreensão leitora do que em produção oral. Haverá casos em que o material deve se concentrar em uma única habilidade, por exemplo se pretende preparar os alunos para o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio no Brasil), cujo foco é na leitura. Mas é impossível generalizar ou ser demasiadamente categórico nessas decisões: mesmo em materiais para preparação de testes que envolvem apenas leitura pode haver um foco subsidiário em outras habilidades: afinal, assistir a vídeos sobre desenvolvimento da leitura pode ajudar; ler infográficos ou outros textos sobre o assunto também pode. Conversar sobre o teste, trocar ideias e conhecimentos sobre ele, é uma ótima prática pedagógica. Em suma, para ensinar uma habilidade, um caleidoscópio de recursos pode ser incorporado no material didático.

O que quero dizer é que por trás do “depende” há múltiplos fatores que vão além de decisões puramente quantitativas sobre o percentual do tempo dedicado a uma ou outra habilidade. A seguir comento algumas questões qualitativas que considero ser fundamentais durante o desenvolvimento de habilidades e competências linguístico-discursivas.

1 Como as habilidades linguísticas são abordadas nos objetivos gerais?

Atualmente é frequente a adoção dos critérios estabelecidos no Quadro Comum Europeu de Referências para Línguas (QCER) no desenvolvimento de materiais didáticos. De acordo com esses critérios, há seis níveis de proficiência na escala global (A1, A2, B1, B2, C1 e C2) e cada um desses 6 níveis é organizado em 3 competências centrais: Compreender, Falar e Escrever. Essas competências retomam, pois, a noção de habilidades linguísticas e elas são, por sua vez, categorizadas em 5 competências subsidiárias, assim:

CompreenderCompreensão oral e leitura
FalarInteração oral e produção oral
EscreverEscrita

Os níveis A1-C2 são utilizados globalmente e podem ser encontrados em materiais didáticos que vão de planos de aulas (por exemplo nesta página do Conselho Britânico) a coleções de vários volumes em diferentes línguas, por exemplo esta coleção para ensino de espanhol). Para ver uma tradução oficial para o português de uma ficha de avaliação das competências correspondentes a cada nível (A1 a C2), para cada uma das 5 categorias subsidiárias, clique aqui.

Como vemos, os critérios do QCER não abordam a proficiência linguística ao redor das quatro habilidades tradicionalmente utilizadas (leitura, escrita, fala e escuta). O que se tem nesses critérios é um rearranjo e um olhar diferente à noção de habilidades. Esta abordagem também está presente na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) brasileira, cuja proposta pedagógica se faz ao redor de 4 eixos organizadores: oralidade, leitura, escrita conhecimentos linguísticos e gramaticais e dimensão intercultural. Cada eixo organizador é subdividido em unidades temáticas: a oralidade, por exemplo, é subdividida em “interação discursiva”, “compreensão oral” e “produção oral” nos quatro anos do Ensino Fundamental 2; a leitura e a escrita também têm suas unidades temáticas que, ao longo do 4 anos, são semelhantes mas apresentam pequenas variações. (Não vou comentar sobre os eixos conhecimentos linguísticos e  gramaticais e dimensão intercultural porque eles saem do foco deste artigo).

Para efeito de reflexão, examine um material didático que você adota ou adotou no passado: vá ao índice e observe como as habilidades são chamadas; leia as orientações para o professor e analise como as habilidades são entendidas conceitualmente. Elas seguem uma visão mais tradicional de leitura, fala, escrita e escuta? Elas são abordadas de forma mais complexa, como na proposta do QCER ou BNCC? O que estas respostas querem dizer para você e para o trabalho que você pretende realizar com os seus alunos?

2 Como tratar a relação entre as habilidades linguísticas?

Tipicamente, materiais pedagógicos vêm sendo organizados ao redor de tópicos (que eu defino aqui de forma ampla, com sentido similar a “assuntos”) há algum tempo. Para efeito de ilustração, o quadro na foto a seguir mostra, na coluna “Unit”, os tópicos centrais no livro de inglês Loop English for Teens 3 (publicado pela Macmillan Education).

Unidades em Loop English for Teens 3, Macmilan Education.

Também tipicamente, as habilidades linguísticas são trabalhadas dentro de cada tópico, e discriminadas no quadro de contéudos de cada volume como subseções. Na mesma obra da foto acima, a linha superior do quadro de conteúdo, ao lado de “Unit”, encabeça as seguintes colunas: Reading, Vocabulary, Grammar, Listening, Speaking, Writing, Integrate Your Learning e Self-Assessment.  

Organizações similares são frequentes em quadros de conteúdos de livros didáticos. Mas elas não significam, necessariamente, que o trabalho de cada habilidade seja feito de forma independente no miolo do livro. Sabemos que é importante integrar as habilidades e fato é que usamos mais de uma habilidade ao mesmo tempo com frequência. Por exemplo, ao ler este parágrafo agora, é possível que você esteja tomando notas (escrevendo). Em uma situação hipotética durante a qual você comente sobre esta postagem com alguém (falando), você certamente vai ter que prestar atenção (ouvindo) a essa outra pessoa. Em interações online, tão frequentes nestes nossos tempos de pandemia, é ainda mais presente esta integração das quatro habilidades simultaneamente (considerando a multimodalidade presente em plataformas que permitem a digitação de comentários).

O que eu quero dizer com tudo isso? Que é essencial darmos oportunidades aos nossos alunos, nos materiais que produzimos, para que eles possam se engajar em atividades que integrem as habilidades linguísticas. De forma ideal, é importante desenvolvermos atividades de, digamos, leitura, que possam ser retomadas e aprofundadas na oralidade  (seja na interação discursiva, na comprensão ou produção oral) e na escrita (seja no trabalho de estratégias, seja nas práticas de escrita). É pedagogicamente sólida a prática de ensino e aprendizagem que desenvolve conhecimento, competências e reflexões que podem se autoinformar continuamente. No momento estou coescrevendo um livro de português para estrangeiros que pretende ter integração não apenas sequencial mas também cíclica entre as habilidades – o trabalho é prazeroso mas nem sempre fácil.

De qualquer forma, nos materiais que produzimos nem sempre é possível (ou mesmo desejável, por orientações de quem encomenda o material ou por outras características do contexto de produção ou implementação do material) ter uma tecelagem tão complexa no ciclo de trabalho com as habilidades linguísticas (ou competências centrais, ou eixo organizadores, ou como você descreve estes conceitos). Pode-se desejar permitir flexibilidade maior na escolha da sequência e mesmo do escopo do trabalho com cada habilidade (seja por questão de tempo, seja de múltiplas habilidades na turma, ou qualquer outra razão). Mas é sempre importante entender o que o material didático propõe, e avaliar se os objetivos do material são os mesmos que alunos e professores têm naquele momento.

Sugestão para reflexão: Examine o quadro de conteúdos de alguns livros didáticos. As habilidades linguísticas lá aparecem? Em caso afirmativo, com que títulos? Há subdivisões para cada uma delas? Quais e a que essas subdivisões remetem? Escolha uma unidade de cada livro para uma análise mais micro: nestas unidades, o trabalho das habilidades é independente? É possível trabalhar uma habilidade sem trabalhar outra(s)?  Há integração de habilidades, por exemplo, há um trabalho de escrita que envolva também fala ou audição ou leitura?

3 Em que sequência as habilidades linguísticas devem ser apresentadas?

Há alguns anos participei de um projeto de pesquisa liderado pelas Universidade de Oxford e Reading, no Reino Unido. Um dos focos da pesquisa era o ensino e a aprendizagem de estratégias de produção escrita em língua estrangeira (francês). Meu chefe na época, Ernesto Macaro, um ávido defensor do ensino da escrita, uma vez levantou esta questões em uma de nossas reuniões: “Por que deixamos a escrita sempre para o final? Por que ela vem sempre depois das outras habilidades linguísticas? Por que não começamos as unidades em livros didáticos com a escrita?”

O cenário que temos hoje, no entanto, é diferente. Apesar de muitas críticas, a abordagem PPP (do inglês, “Presentation”, “Production” e “Practice”) é ainda frequentemente adotada em muitos materiais didáticos, especialmente aqueles que são produzidos tendo-se uma audência ampla (nacional, global) em mente. Os dois exemplos ilustram a abordagem PPP.

Exemplo 1

PresentationProductionPractice
Ouve-se um áudio em que duas pessoas interagem, uma dando a outra direções de como chegar a um lugar. Os alunos são convidados a identificar as palavras-chave (em inglês, turn right/left, block, go ahead).Alunos ouvem novamente o áudio e completam o seu roteiro, usando as palavras-chave.Alunos fazem um roleplay ou uma IGA (information gap activity) em que dão direções de como chegar a lugares na vizinhança

Exemplo 2

PresentationProductionPractice
Lê-se um texto em que fica evidente o contraste entre 2 tempos gramaticais, por exemplo o Present Perfect Simple e Present Perfect Progressive (em inglês) ou o Pretérito Perfeito e o Pretérito Imperfeito (em português).Alunos fazem uma atividade de múltipla escolha, escolhendo opções de tempos verbais para completar um pequeno texto.Alunos escrevem um relato pessoal usando os tempos verbais apresentados.

A abordagem PPP está associada à apresentação de habilidades de compreensão (isto é, a escuta e a leitura) em primeiro lugar, permitindo a “Presentation”. Vêm depois as habilidades de produção (a fala e a escrita), levando a “Production” e, em seguida, “Practice”. A pergunta a ser feita então é: esta prática é válida? Há equívocos a serem considerados?

Novamente, meu entendimento é que “depende”. É válido pedirmos aos alunos que ouçam, digamos, um podcast, para depois propormos um debate sobre ele.  Ou que leiam um ou dois artigos de jornal para depois escreverem uma postagem de blogue sobre o assunto. Faço reservas, no entanto, à rigidez na aceitação deste modelo. As perguntas de Ernesto Macaro bateram pesado em mim naquela reunião há tempos, e nunca mais esqueci delas.  Já produzi materiais em que a escrita vem primeiro – e acredito que a escrita tenha um potencial muito positivo não apenas para geração de ideias em brainstorms mas também como apoio no desenvolvimento conceitual (como ferramenta simbólica dentro de uma concepção vykotsiana). De qualquer forma, sempre me questiono sobre a sequência das habilidades ao desenhar um novo projeto de material didático. Gosto da ideia da inovação – e se não tentarmos algo novo nunca vamos saber se de fato a ideia é válida.

Analise um plano de aula que você preparou recentemente da seguinte forma: identifique o foco principal de ensino e pergunte-se: o processo pedagógico seguiu a abordagem PPP? O que se atingiu com a abordagem? O que deixou de ser atingido? Poderia ter havido resultados mais fortes se outra abordagem fosse seguida? Em caso afirmativo, de que forma?

Analise um ou mais livros didáticos que você adotou ou adota. As habilidades linguísticas (ou as competências centrais, ou os eixos organizadores) são apresentadas na mesma sequência nas diferentes unidades? Se sim, há ênfase na abordagem PPP? Se não, que critério rege a decisão sequências presentes na obra?

Resumindo, são sempre complexas as decisões sobre a “quantidade” e a “qualidade” do trabalho de compreensão e produção oral, bem como do trabalho de compreensão e produção escrita, em um material didático. Não há respostas fáceis, únicas, generalizáveis.  Esta complexidade pode parecer desanimadora – mas podemos entendê-la como desafiadora. E tentar, sempre, compreender melhor os fatores envolvidos. E tomar decisões fundamentadas com base em pesquisa acadêmica. Neste sentido, recomendo a leitura do artigo Language Skills: Questions for Teaching and Learning, de Amos Paran. O artigo foi publicado em 2012 mas ele faz um apanhado sobre o ensino e aprendizagem das habilidades linguísticas nos 15 anos anteriores. Este olhar histórico, em perspectiva, é sempre muito inspirador na minha opinião.

2 thoughts on “Como fazer a divisão das habilidades ao desenvolver material pedagógico? 25% por habilidade?”

  1. Em 2011 iniciei um projeto social juntamente com os alunos do ensino Medio de uma escola internacional em Sao Paulo com objetivos hibridos. Queriamos melhorar tres pequenas escolas municipais de uma cidade no interior de Sao Paulo, onde muitos dos alunos tinham uma segunda propriedade para lazer aos fins de semana. Ficamos muito impressionados com 3 coisas que vimos la: o lixo sendo queimado no playground, uma professora (voluntaria) brincando de chicotinho queimado com um pedaco de trapo ( nao havia 1 brinquedo ali) e umas revistas Manchete ( a ultima publicacao tinha sido em 2000) como unico recurso na caixinha com titulo: Biblioteca de sala. Eu perguntei a algumas professoras como faziam para sugerir uma leitura, ou oferecer uma coisa a mais aos alunos que precisassem, ou desejassem. Ela tinha que trazer de casa, e pedir aos alunos que copiassem do quadro. ( so tinham mimeografos e esse recurso leva tempo para rodar copias) Naquele momento dei-me conta da importancia de um material didatico. Do compromisso de quem escreve em alcancar todos os publicos, de quao completo ele necessita ser. E claro, que em um mundo ideal, usar o material didatico como material de apoio, com muitos outros recursos complementares tem seu valor. Porem, voltando ao meu publico citado, o livro didatico adotado, que nao foi escolhido nem por aquele professor, nem por aqueles alunos, precisaria oferecer os mesmos desafios e informacoes para aqueles alunos. E ate o algo mais. Finaizamos o projeto plantando arvores frutiferas, criando uma biblioteca movel de livros e brinquedos ( as 3 escolas eram perto), e fizemos um trabalho de conscientização sobre o descarte do lixo, instalando um minhocario e lixos reciclaveis. Algum tempo depois, voltei la e encontrei 3 criancas em um sitio que vieram mostrar os livros que estavam lendo. Tambem mostraram uma caderneta com os livros que ja haviam lido. O minhocario nao foi a frente. Os lixos reciclaveis nao estavam sendo usados, pois a prefeitura nao recolhe lixo ali. Mas os pais estavam fazendo um rodizio para levar ate o ponto de coleta. O que achei uma solucao muito boa. Esse post da Denise, um must read para todos nos, envolvidos em escrita de material didatico, e a aqueles interessados em iniciar nessa missao tao importante de proporcionar oportunidades de interacao de habilidades que servirao de base para equipar nossos alunos para os desafios que nem nos mesmos conhecemos ainda. Prepara los para uma tecnologia que ainda esta para ser inventada, para empregos que talvez ainda nao existam, e para resolverem problemas que ainda estao por surgir. Por isso, tomando emprestado as palavras da Denise, ” É pedagogicamente sólida a prática de ensino e aprendizagem que desenvolve conhecimento, competências e reflexões que podem se autoinformar continuamente.” E faco de suas palavras as minhas, o apoio academico para nos nortear e fundamental. Amei o texto, super informativo, com exemplos taticos e servindo quase como um guia de referencia para se ter ao lado ao iniciar um trabalho. Obrigada pela generosidade em dividir conosco aqui. 😉

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    • Marcelle, obrigada por compartilhar essa sua experiência tão significativa. A ação-seguida-de-reflexão que você descreve ilustra como é importante tentarmos, com nossas práticas pedagógicas, fazer o nosso mundo um pouco melhor. Sim, o apoio acadêmico é fundamental. Se ele não existe a reflexão fica sem fundamento, sem um entendimento sólido. E a ação, possivelmente inócua. Às vezes (apenas) divertida, mas inócua. Obrigada de novo.

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