
Esta postagem é a segunda de uma série que contém respostas a perguntas feitas durante uma live organizada pelo Centro de Línguas Ann Arbor em que participei recentemente. Para ver a primeira postagem-resposta (sobre a divisão das habilidades em materiais pedagógicos), clique aqui.
A pergunta-título desta postagem é uma interpretação minha para reescrever de forma sintética a seguinte série de perguntas feita pela professora Analice Kanto:
- Você tem participação na escolha das imagens e no layout das páginas dos livros que escreve?
- Ainda sobre participação: você escolhe tudo ou indica somente o tipo de imagem que gostaria?
- Depois da página pronta (com texto escrito e imagem), você aprova a página ou é outra pessoa?
Como na postagem-resposta anterior, a resposta curta às três perguntas é “depende”. Depende de muitos fatores. Por exemplo, o tempo disponível no projeto para idas e vindas entre o time de autores e o time editorial: algumas vezes não há tempo de o autor rever a última prova do material, que costuma ser a quarta prova, antes de ele ir para impressão. E algumas vezes decisões finais sobre imagens são feitas na última prova. O nível de participação do autor depende também da editora (diferentes editoras podem ter diferentes procedimentos e dar mais ou menos voz aos autores nas decisões sobre imagens). Depende de como o time de autores é configurado na obra: às vezes há diferentes autores no mesmo projeto, com os quais eu não converso, e as minhas propostas sobre imagens precisam ser avaliadas pelos editores, que têm uma visão mais global da obra.
A seguir vou dar detalhes sobre como a escolha de imagens se insere no processo de desenvolvimento de material didático, na minha experiência. Antes de prosseguir, é preciso esclarecer a terminologia: quando escrevemos um livro didático ou qualquer outro material para publicação (que será editado, revisto e produzido, antes de ser disseminado), é importante distinguir os tipos de imagens a que nos referimos. Grosso modo, há dois tipos de imagens: fotos e ilustrações (comumente chamadas de “ilustras” no meio editorial no Brasil). Quando falamos de imagens consideramos também alguns textos como pinturas, charges, folhetos, entre outros, mas nesta postagem meu foco será em ilustras e fotos.
Quando devemos usar ilustras?
Ao idealizar um recurso visual para algum fim pedagógico (por exemplo, apresentar vocabulário, prover andaimento em uma leitura ou oferecer estímulo visual para um roleplay) muitas vezes faz mais sentido considerar a inserção de uma ilustra e não de uma foto. Algumas situações recentes que me levaram a pedir ilustras (e não fotos) envolveram a necessidade das seguintes imagens:
- imagem que não foi encontrada no banco de imagens sugerido pela editora (mais sobre banco de imagens mais adiante): por exemplo, num livro de português para estrangeiros que coescrevi recentemente, ao apresentar a lenda do uirapuru, era importante ter uma imagem da ave acompanhando a lenda. Não havia tal imagem no banco de imagens que estávamos utilizando na obra, então pedimos a criação de uma ilustra.
- imagens que ilustravam anúncios publicitários ou cenas que retomavam programas de TV populares, como alguns reality shows. Nesses casos, o uso de fotos de anúncios genuínos ou cenas de, digamos, Master Chef ou Big Brother, iria trazer ao material uma caracterização publicitária que livros didáticos precisam evitar. Então tivemos que “inventar” anúncios e cenas de shows fictícios, daí a necessidade de ilustras.
- imagem de cena complexa, com diferentes pessoas realizando ações diferentes (para apresentar o Present Progressive em inglês (is walking, are reading etc.). É possível encontrar ilustras em bancos de imagens retratando várias pessoas em diferentes atividades, mas nem sempre achamos um rol de pessoas com as características físicas ou desempenhando as ações que queremos mostrar.
Como indicar as características das imagens que desejamos?
A importância do detalhamento das imagens que queremos ter nos nossos materiais não pode ser subestimada – e este comentário vale tanto para ilustras como para fotos (vou escrever sobre fotos mais adiante). No caso de ilustras, é importante registrar o maior número de detalhes possível. Para cada pessoa na ilustra, precisamos registrar: idade, gênero, características físicas (altura, cor de cabelo e olhos etc), roupas, onde na ilustra a pessoa se posiciona, o direcionamento do olhar da pessoa, expressão facial, gestos, objetos que segura, entre outros. Esse detalhamento é necessário também para outros componentes da ilustra, por exemplo, no caso de uma visão aérea de um quarteirão, precisamos deixar claro que construções estão onde, se há placas de sinalização, letreiros etc. Ao escrever esses briefings, eu procuro pensar: o ilustrador será capaz de desenhar exatamente a cena que eu visualizo?
Qual o processo de pedido de fotos?
Como no caso de ilustras, é importante deixar claro, nos nossos primeiros rascunhos, detalhes essenciais sobre as fotos que gostaríamos de inserir nos materiais que desenvolvemos. Se o projeto estabelece de antemão que banco(s) de imagem podemos utilizar no nosso manuscrito (e este é o procedimento usual atualmente), então nós, os autores, precisamos buscar no(s) banco(s) de imagens o que achamos ser adequado. Aqui deixo uma ressalva: este processo pode levar horas (literalmente). Fotos específicas de, digamos, lugares no mundo (como a Ópera de Sydney), objetos (um estetoscópio) ou comidas (feijoada), são encontradas mais facilmente. Nesses casos, quando encontramos uma ou mais fotos potencialmente adequadas, indicamos no nosso primeiro rascunho o código da foto no banco de imagens, além da foto propriamente dita. Podemos sugerir o layout das fotos na página, e bons editores irão considerar o pedido do autor (que deve ser, claro, justificado). No entanto, decisões sobre layout de página são basicamente uma prerrogativa editorial. Há muitos desafios nas composições de páginas que os editores saberão identificar e solucionar melhor que os autores.
Ainda sobre a identificação das fotos desejadas: algumas fotos podem requerer um longo tempo para ser encontradas, e abaixo listo buscas que são ou foram especialmente complexas para mim.
- Muitos livros didáticos atuais são organizados em unidades que têm, na sua página inicial, uma ou mais imagens disparadoras (para contextualização dos temas da unidade, para ativação de conhecimento prévio dos alunos etc). Estas imagens precisam ser, por definição, impactantes. Devem, também, evitar estereótipos, mostrar diversidade entre si (isto é, não podemos ter só mulheres ou só adolescentes ou só pessoas brancas nas imagens disparadoras ao longo do livro). Geralmente essas imagens também precisam ter orientação retrato (e não paisagem). Todas essas restrições vão diminuindo as possibilidades de resultados nas nossas buscas. Minha experiência é que a escolha de imagens disparadoras leva tempo ao longo do processo autoral e editorial, sendo muitas vezes decidida apenas em segundos ou terceiros rascunhos (às vezes até mais tarde, durante as provas).
- Há uns meses, ao escrever uma seção de apresentação de vocabulário sobre eventos durante o dia de uma pessoa, foi impossível achar no banco de imagens fotos para todos os eventos que eu tinha em mente no meu texto escrito. Muitas das fotos que eu encontrava sobre os eventos envolviam pessoas diferentes (o que não seria coerente na ilustração da narrativa); outras vezes os cenários geográficos e culturais não eram compatíveis entre si (por exemplo, a vegetação em uma foto parecia ser brasileira mas o ponto de ônibus em outra era tipicamente londrino). Para montar a atividade, que tinha cerca de 10 fotos, acabei tendo que mudar o texto narrativo diversas vezes.
Há ilustras em bancos de imagens?
Sim, há. Dependendo do orçamento da outra, faz mais sentido usar ilustras de um banco de imagens já contratado do que encomendar a produção de nova ilustra por um ilustrador. Em um bom banco de imagens você pode buscar o tipo de imagem que procura. Por exemplo, no Shutterstock ou no Getty, você pode selecionar se deseja fotos, ilustrações ou vetores.
E quando não encontramos a foto que desejamos?
Nesses casos, podemos sugerir que se produza uma ilustra (e seguir os procedimentos comentados acima). Outras vezes, se possível, podemos usar nossas próprias fotos. Isto pode ser particularmente útil quando queremos registrar um mural ou placa na cidade, ou um objeto que dificilmente será encontrado em um banco de imagens, por exemplo um jogo do rapa ou um lenço dos namorados (como vemos abaixo). As fotos a seguir, que aparecem no livro Contextos: Curso intermediário de português, de minha coautoria com Gláucia V. Silva e Viviane Gontijo, foram tiradas por mim.
Na mesma obra usamos fotos das autoras para ilustrar detalhes de faces de pessoas articulando alguns sons do português (por exemplo, [e] como em tê-la ou [ɛ] como em tela) e um grupo de congado em Minas Gerais. A vantagem da sua foto é que você tira o que quer, mas pode haver dificuldades de logística em obter a foto, de tecnologia (a foto precisa ter boa resolução) e de permissão dos direitos em reproduzir a foto se ela retratar pessoas.
Esses procedimentos para escolha de fotos e ilustras foram sempre assim?
Não. E acho importante falar um pouco mais sobre isso. Afinal, o que fazemos hoje difere do que fizemos no passado e certamente nossos procedimentos serão diferentes no futuro. Esta conscientização é essencial para que procuremos decisões mais ágeis, mais eficientes e mais inclusivas no futuro. Segue então um breve relato da minha experiência: quando comecei a escrever, na década de 90 do século passado, aprendi rápido que era importante brifar detalhadamente as ilustras que queria. Meus primeiros livros foram uma série de readers (sem fotos, apenas com ilustras, sendo que elas ocupavam a maior parte de todas as páginas) e outra coleção de inglês para o Ensino Fundamental 1, onde havia predominantemente ilustras. Nessa obra e nas que se seguiram até o final da primeira década deste século, quando eu queria fotos, normalmente eu inseria pedidos como os seguintes nos arquivos das unidades que eu desenvolvia:
- [Foto de dois colegas de trabalho; um com ar inquisitivo, fazendo pergunta; o outro com ar de desapontamento e irritação]
- [Foto de duas crianças de 10-11anos entrevistando um adolescente. Um dos entrevistadores filma a entrevista com um celular; o outro conduz a entrevista apoiando-se em notas escritas num bloco de notas.]
- [Foto de um cachorro-quente diferente, como se fosse um rocambole de pão e salsicha.]
- [Foto de arqueólogo(s) em local de trabalho, em escavação, manipulando fósseis]
Ao receber as provas para revisão eu conferia a adequação das fotos incluindo o layout da página. Em alguns projetos os editores me passavam algumas opções de fotos antes ainda da primeira prova, e a escolha era feita assim. Ou seja, àquela época um time de iconografia (in-house na editora, ou terceirizado) fazia o trabalho de busca mais demorado. Isso mudou. Este trabalho agora é feito pelos autores e, como disse antes, é preciso levar em conta, ao escrever, que essa busca pode ser demasiadamente longa. Já passei dias em que gastei mais tempo navegando no banco de imagens do que escrevendo propriamente dito!
A escolha de imagens em livros didáticos é um tópico vasto. Ele se desdobra em subtópicos de que não falei aqui, por exemplo, o uso de fotos no domínio público, as funções pedagógicas das imagens nos livros didáticos, a escolha das capas dos livros, entre muitos outros – quem sabe faço isso em outra postagem?
Escrevam contando detalhes das suas experiências!
Denise, muito obrigada pelo seu texto. Grande parte das minhas dúvidas sobre fotos/ilustrações foram respondidas em sua ampla explicação, mostrando que o processo usado no meu local de trabalho é bastante parecido com o seu, embora em bem menor escala. Pude me identificar com vários momentos do seu texto e perceber o quanto o briefing detalhado das imagens é importantíssimo.
Agradeço sua gentileza e iniciativa de compartilhar seu conhecimento tão vasto sobre o assunto!
Analice, obrigada pela sua resposta e comentários sobre a sua experiência. Posso adiantar que a próxima postagem no blogue, escrita por uma pessoa convidada (uma editora com grande experiência em produção de material didático), vai retomar o assunto e dar mais, muito mais detalhes sobre o processo de produção de um livro. Acho que você vai gostar! Abraços!