“Gláucia Silva é a autora convidada para esta postagem. Trabalho com Gláucia desde 1998: começamos nossa interação profissional no ensino de inglês no Brasil, e alguns anos depois começamos a interagir na área de ensino e aprendizagem de português para estrangeiros. Publicamos vários artigos juntas, apresentamos em conferências, e escrevemos alguns livros didáticos nessa área também. Gláucia é uma coautora – e amiga – especial. O foco desta postagem reflete a principal área de pesquisa da Gláucia no momento: o ensino e a aprendizagem de português como língua de herança.”
Denise Santos
Aqueles de nós que ensinamos línguas estamos acostumados com duas “categorias” de falantes: nativos e estrangeiros. Tomemos como exemplo a língua portuguesa, que é falada nativamente pela maioria da população brasileira. Muitos estrangeiros se interessam pelo português, que aprendem no exterior ou num país de língua portuguesa, e se tornam falantes de português como língua estrangeira. Agora, consideremos filhos de brasileiros (ou de outros imigrantes lusófonos) que nascem e/ou crescem num país onde não se fala português. Essas crianças e jovens são escolarizados e são fluentes na língua majoritária do local onde vivem. No entanto, muitas vezes, esses filhos de lusófonos também entendem e até falam português. Para eles, o português é língua nativa ou língua estrangeira? A resposta é: nem uma nem outra. Nesses casos, o português é uma língua de herança.
Neste texto, oferecemos uma pequena introdução ao português como língua de herança (PLH). Primeiramente, definimos língua e falantes de herança e, em seguida, discutimos algumas características das línguas de herança em geral e do PLH em particular. Concluímos o texto mencionando outras questões relacionadas ao PLH e oferecemos sugestões para saber mais a respeito do tema.
Língua de herança: o que é
O termo “língua de herança” (heritage language) começou a ser usado no Canadá no final dos anos 1970 (Cummins, 1983, 2005) para fazer referência a línguas que não fossem o inglês e o francês. Nos anos 1990, o termo começou a ser utilizado também nos EUA (Cummins, 2005). Embora algumas definições do termo incluam línguas ancestrais (Fishman, 2001), em meios educativos o termo “língua de herança” costuma se referir a línguas trazidas por imigrantes e usadas por seus descendentes em suas comunidades. Assim, o/a falante de herança (heritage speaker) é uma pessoa que foi criada num ambiente onde se utiliza(va) uma língua minoritária e que fala ou pelo menos entende essa língua, sendo, até certo ponto, bilíngue (Valdés, 2001).
Por viverem em países onde a sua língua de herança (LH) é minoritária, os falantes de herança muitas vezes são escolarizados apenas na(s) língua(s) majoritária(s). Além disso, o uso da LH costuma ser limitado a situações informais. Portanto, a fluência na LH costuma ser restrita a registros familiares e informais. Os falantes de herança não costumam, por exemplo, demonstrar fluência no registro acadêmico (Valdés & Geoffrion-Vinci, 1998), ao qual não tendem a ser expostos. Com isso, os falantes de herança podem até cometer “gafes” quando se encontram em certas situações, como um aluno de descendência portuguesa, com pronúncia nativa em português, que tratou um professor por “tu” em Lisboa. O aluno, nascido e criado nos Estados Unidos, ouvia e usava exclusivamente “tu” em português, pois tinha sido exposto apenas ao registro familiar da língua. Ao ir estudar em Portugal, aprendeu a duras penas que não se usa “tu” com o professor…

Além de normalmente estarem familiarizados apenas com certos registros, os falantes de herança apresentam grande variação em relação a níveis de fluência na LH, encaixando-se dentro de um contínuo bilíngue que vai de menos a mais fluente (Valdés, 2001). Enquanto alguns apenas compreendem e não chegam a falar a língua, outros leem correntemente e até escrevem na LH. Vários fatores contribuem para que um/a falante de herança seja (ou não) fluente na LH. Como é de se esperar, o uso da LH no seio familiar é essencial para o desenvolvimento das habilidades linguísticas do/a falante de herança (Lico, 2011). Além disso, a própria atitude dos familiares e da comunidade em relação à língua influencia a manutenção e o desenvolvimento da LH: como defende Lico (2011), o orgulho da “bagagem” linguístico-cultural dos imigrantes está associado à auto-aceitação e ao respeito a si mesmo, à sua língua e à sua cultura. A valorização da língua e da cultura de herança é essencial para que os falantes de herança se identifiquem com a LH e se tornem fluentes nela (embora, como apontado antes, sempre haja variação no nível de fluência desses falantes).
“A valorização da língua e da cultura de herança é essencial para que os falantes de herança se identifiquem com a LH e se tornem fluentes nela.”
Gláucia Silva
Por não ser nem nativa nem estrangeira, a LH tem características próprias. Alguns de seus traços se assemelham à língua nativa, outros se parecem com a língua estrangeira, e outros são encontrados apenas na LH. A seguir, discutimos alguns aspectos do português como língua de herança.
Características
As línguas de herança costumam exibir características que decorrem do contato com a(s) língua(s) majoritária(s). Apesar de os falantes de herança muitas vezes apresentarem um sotaque nativo e bastante familiaridade com a cultura de herança (Montrul, 2008), o seu vocabulário na LH costuma ser muito mais limitado do que na sua língua dominante (a língua com a qual o/a falante de herança se sente mais confortável), já que as situações de uso da LH também são limitadas. Além disso, a influência lexical da língua dominante pode ser facilmente averiguada. Tomando como exemplo o PLH num ambiente onde o inglês é língua majoritária, seria comum ouvir palavras como “apontamento” (por “hora marcada, consulta”) ou mesmo palavras utilizadas em inglês (no entanto, deve-se notar que esse tipo de influência é verificada também, embora possivelmente em menor grau, entre imigrantes que falam português nativamente). O uso de vocábulos da língua dominante nos leva a outra característica comum a falantes de herança: o code-switching, ou alternância de códigos, que é a mudança entre duas ou mais línguas, até no mesmo enunciado. Como aponta Carvalho (2012), o code-switching cumpre funções variadas e é rotineiro entre falantes de herança quando interagem com outros membros da sua comunidade.
Além de aspectos léxicos e do code-switching, uma LH também pode diferir da língua falada nativamente em aspectos morfossintáticos. Investigações sobre línguas de herança mostram que certas estruturas que estão presentes na língua falada nativamente podem aparecer de maneira simplificada ou até mesmo não se manifestar na língua de herança. Como exemplo, tomemos o estudo de Amaral, Cunha e Silva (2011), a respeito do futuro do subjuntivo em PLH (em contato com inglês). Os autores testaram também falantes nativos de português e aprendizes de português como língua estrangeira (PLE). Como se esperava, o grupo de falantes nativos foi o que se saiu melhor no experimento. Além disso, sabe-se que o uso do modo subjuntivo é um desafio para os que aprendem PLE. Apesar de os resultados dos falantes de PLH terem sido um pouco melhores do que os dos aprendizes de PLE, a diferença entre os dois grupos não foi significativa, o que sugere que os contrastes entre o modo indicativo e o modo subjuntivo constituem dificuldade não somente para os aprendizes de PLE, mas também para os falantes de PLH.
O estudo de Amaral, Cunha e Silva envolveu falantes de herança de português brasileiro (PB) e de português europeu (PE). No entanto, há estruturas que podem estar presentes em uma das variedades de herança mas não na outra. É o caso do infinitivo pessoal, que não chega a ser dominado por falantes de herança de PB, apesar de estar presente em PE de herança (Pires & Rothman, 2009). Rothman (2007) mostra que esta estrutura não é dominada pelos falantes de herança de PB e argumenta que isso ocorre porque o infinitivo pessoal vem sendo cada vez menos usado na língua falada no Brasil. Segundo o autor, o infinitivo pessoal em PB é uma estrutura aprendida essencialmente através da escolarização. Por não serem escolarizados em português, os falantes de herança de PB (em contato com o inglês nas pesquisas citadas) não chegam a adquirir a estrutura.
Observações finais
Nesta pequena introdução ao PLH, vimos o que é essa variedade linguística e algumas das suas características. No entanto, há muitas outras questões a se discutir, entre as quais a manutenção, o desenvolvimento e o ensino do PLH. Relacionados a esses assuntos estão questões relativas à identidade, às políticas educacionais, à aceitação no meio social, e muitas outras. O tema é amplo e, apesar de já termos algum conhecimento sobre PLH, ainda há muito a se debater e a se investigar.
Para saber mais:
– Revista online: Portuguese Language Journal (volume sobre PLH)
-Livro: Português como língua de herança: A filosofia do começo, meio e fim. Organizado por Felicia Jennings-Winterle e Maria Célia Lima-Hernandes. 2015. New York: Brasil em Mente.
Referências bibliográficas
Amaral, L., Cunha, F., & Silva, G. (2011). The acquisition of a semantic contrast in subordinate clauses by heritage speakers of Portuguese. Trabalho apresentado no congresso da AAAL (American Association for Applied Linguistics), Chicago, 26-29 de março.
Carvalho, A. M. (2012). Code-switching: From theoretical to pedagogical considerations. Em S. M. Beaudrie & M. Fairclough (Orgs.), Spanish as a heritage language in the United States: The state of the field (pp. 139-157). Washington, DC: Georgetown University Press.
Cummins, J. (1983). Heritage language education: A literature review. Toronto: Ontario Institute for Studies in Education.
Cummins, J. (2005). A proposal for action: Strategies for recognizing heritage language competence as a learning resource within the mainstream classroom. The Modern Language Journal, 89, 585-592.
Fishman, J. (2001). 300-plus years of heritage language education in the United States. : Profiles and possibilities. Em J. Peyton, D. Ranard, & S. McGinnis (Orgs.), Heritage languages in America: Preserving a national resource (pp. 81-97). McHenry, IL: Delta Systems e Center for Applied Linguistics.
Lico, A. L. (2011). Ensino do português como língua de herança: Prática e fundamentos. Revista SIPLE, 2 (1).
Montrul, S. (2008). Incomplete acquisition in bilingualism: Re-examining the age factor. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins.
Pires, A, & Rothman, J. (2009). Disentangling sources of incomplete acquisition: An explanation for competence divergence across heritage grammars. International Journal of Bilingualism, 13, 211-238.
Rothman, J. (2007). Heritage speaker competence differences, language change and input type: Inflected infinitives in heritage Brazilian Portuguese. International Journal of Bilingualism, 11, 359-389.
Valdés, G. (2001). Heritage language students: Profiles and possibilities. Em J. Peyton, D. Ranard, & S. McGinnis (Orgs.), Heritage languages in America: Preserving a national resource (pp. 37-77). McHenry, IL: Delta Systems e Center for Applied Linguistics.
Valdés, G., & Geoffrion-Vinci, M. (1998). The problem of the “underdeveloped” code in bilingual repertoires. The Modern Language Journal, 4, 473-501.
(Este artigo foi publicado originalmente na Revista New Routes, volume 59, pp. 28-30).

Gláucia V. Silva tem mestrado em Linguística e doutorado em Linguística Hispânica pela Universidade de Iowa (EUA). É professora no Departamento de Português da Universidade de Massachusetts Dartmouth (EUA), onde também coordena os cursos de língua portuguesa. A sua pesquisa centra-se no ensino e aprendizado de português como língua de herança.
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